O método de Donald Trump
Tiago Nogara -
A derrota definitiva do imperialismo na América Latina não virá apenas por meio da atuação internacional dos governos nacionais. Ela dependerá também da capacidade das forças progressistas e populares de resistir, em âmbito nacional, à histórica aliança entre elites oligárquicas entreguistas e os falcões de Washington, que seguem trabalhando para manter vivo o fantasma da doutrina Monroe
1.
Nos últimos dias, os encontros de alto nível entre líderes de países em desenvolvimento em Moscou e Pequim movimentaram os noticiários ao redor do mundo. Em Moscou, a presença conjunta de Putin, Xi Jinping e Lula no desfile que marcou os 80 anos da vitória soviética sobre os nazistas teve grande simbolismo.
Relembrando a solidariedade terceiro-mundista do “espírito de Bandung”, ocorreram também na capital russa encontros como o de Nicolás Maduro – que lidera a resistência venezuelana contra as sanções ilegais impostas pelos Estados Unidos – com Ibrahim Traoré, a surpreendente e jovem liderança de Burkina Faso que herdou a alma revolucionária de Thomas Sankara.
Por fim, a partir de Pequim, Lula e Xi Jinping reafirmaram o compromisso com o multilateralismo e a cooperação internacional, em contraposição ao unilateralismo adotado pelo governo Trump, ao passo que o 4º Fórum CELAC-China confirmou a expectativa de uma nova era de vigor para os laços de cooperação Sul-Sul.
Tudo isso ocorre em um momento em que os Estados Unidos, temendo uma possível recessão, começam a dar os primeiros sinais de recuo na tentativa de intensificar a agressividade tarifária contra a China. Como resultado, é natural que surja entre lideranças políticas, analistas e observadores um sentimento crescente de que uma nova ordem multipolar avança de forma consistente.
E isso não é por acaso. O mundo de fato mudou, e o peso econômico, político e populacional dos países em desenvolvimento é uma realidade irreversível. Isso trará consequências importantes para a configuração das relações internacionais nos próximos anos.
No entanto, ao avaliar especificamente o caso da América Latina e do Caribe, algumas nuances devem ser consideradas, a fim de evitar a conclusão precipitada de que o imperialismo americano perdeu vitalidade de forma irremediável, ou de que estamos presenciando um fim inevitável do resgate da doutrina Monroe.
2.
É preciso entender que a estratégia do governo Donald Trump para a América Latina está longe de ser moderada, e tampouco a região ocupa um papel secundário na política externa estadunidense. Não é coincidência que a primeira viagem oficial do Secretário de Estado Marco Rubio tenha sido um giro por países da América Central e do Caribe. Há mais de um século – desde a visita de Philander Chase Knox ao Panamá em 1912, durante a construção do Canal do Panamá – que a América Latina não era o destino da primeira viagem oficial de um Secretário de Estado estadunidense.
Desde o início do mandato, o principal objetivo dos Estados Unidos no contexto hemisférico tem sido claro: desestabilizar e enfraquecer os laços de cooperação dos países da região com a China. Entre os muitos meios utilizados para atingir esse objetivo, dois são os mais relevantes para entender a conjuntura atual: (i) a aplicação de pressões e chantagens sobre os governos locais; e (ii) o apoio explícito a forças políticas de extrema direita em diversos países, com o objetivo de conter o avanço dos governos progressistas.
Com relação ao primeiro método, autoridades de alto escalão do governo americano e de seus diversos tentáculos têm feito inúmeras menções públicas contra os vínculos de cooperação entre China e América Latina, como mostram as declarações recorrentes dos comandantes do USSOUTHCOM.
Na América Central e no Caribe – onde a política do “Big Stick” historicamente se mostrou mais agressiva – há uma tentativa explícita de redesenhar os vínculos políticos e econômicos da região. As pressões sobre o Panamá, que incluíram até mesmo ameaças de retomada forçada da zona do Canal, levaram o país a anunciar sua retirada da Iniciativa Cinturão e Rota e a transferir a administração de dois portos do canal das mãos da CK Hutchison, de Hong Kong, para a estadunidense BlackRock.
Em visita à Costa Rica, Marco Rubio endossou as críticas do governo costarriquenho à implantação das redes 5G pela Huawei. Em comunicado oficial, o chanceler costarriquenho Arnoldo André saudou o alinhamento com os estadunidenses: “A Costa Rica foi reconhecida, parabenizada e elogiada pelo senador Rubio por lidar com as questões de maneira adequada, em consonância com os interesses do novo governo dos Estados Unidos”, ecoando os discursos alinhados ao paradigma de uma suposta “nova Guerra Fria”.
Também com apoio de setores radicais dos Estados Unidos, o presidente Bernardo Arévalo manteve a postura diplomática subserviente da Guatemala, chegando ao extremo de manter o reconhecimento diplomático a Taiwan.
Nesse mesmo contexto, os Estados Unidos têm feito esforços claros para disciplinar seu aliado regional Nayib Bukele, presidente de El Salvador, que — apesar de sua posição à direita do espectro político e da proximidade com Trump — tem buscado aprofundar os laços do país com a China. Em abril, um artigo de opinião no Wall Street Journal, intitulado “El Salvador’s Bukele Is a China Ally”, criticou a complacência do governo americano em relação aos vínculos salvadorenhos com a China.
Por fim, o arrocho das sanções contra Cuba e Nicarágua complementa esse cenário, no qual os Estados Unidos buscam consolidar um “cordão sanitário” em torno desses países e, obviamente, da Venezuela.
Mais ao sul, as pressões sobre o Brasil tornaram-se evidentes nos meses que antecederam a visita do presidente Xi Jinping ao país, com diversas declarações de autoridades americanas expressando descontentamento com a possibilidade de ingresso do Brasil na Iniciativa Cinturão e Rota.
Embora o país não tenha formalizado sua adesão à iniciativa, o governo brasileiro enfatizou sinergias entre seus programas nacionais — Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Nova Indústria Brasil e Rotas de Integração Sul-Americana — e a Iniciativa Cinturão e Rota. As relações com a China seguem em aprofundamento, a ponto de se cogitar a construção de um corredor ferroviário bioceânico entre Brasil e Peru, com apoio direto de empresas e expertise chinesas.
A crise diplomática entre Estados Unidos e Colômbia, ocorrida em janeiro, deu-se justamente em meio a um crescente desacordo estratégico entre os dois países, inclusive no que diz respeito às relações sino-colombianas. Tradicional aliada dos Estados Unidos e única “parceira global” da OTAN na região, a Colômbia sob o governo de Gustavo Petro passou a adotar um rumo alternativo em sua política externa, desafiando o hegemonismo americano e aproximando-se da China.
Em 2023, Gustavo Petro estabeleceu uma Parceria Estratégica com Pequim e, ao longo de mais de um ano, ensaiou o ingresso do país na Iniciativa Cinturão e Rota — medida oficialmente anunciada durante o 4º Fórum China–CELAC.
3.
No que diz respeito ao segundo método — voltado a alterar a correlação de forças políticas e sociais em favor da extrema direita e em detrimento das forças progressistas —, as ações do governo Donald Trump também têm sido bastante explícitas. Não por acaso, ao anunciar tarifas sobre produtos de diversos países, foi exatamente a Argentina que recebeu as menores taxações, em episódio comemorado publicamente por Javier Milei.
Representante máximo da nova extrema direita impulsionada pelo trumpismo na América Latina, Javier Milei tem demonstrado disposição inequívoca de sacrificar os interesses de seu próprio povo e até mesmo do empresariado nacional — como demonstra sua insistência em tumultuar as lucrativas relações bilaterais com a China — em troca de demonstrações de lealdade incondicional a Washington. Sob seu comando, a Argentina anunciou a saída da Iniciativa Cinturão e Rota e a desistência do processo de adesão ao BRICS+, além de ter se ausentado do Fórum China–CELAC realizado em Pequim.
Outros dois aliados ideológicos do trumpismo na região, os governos de Daniel Noboa, no Equador, e Nayib Bukele, em El Salvador, têm mostrado menor alinhamento aos esforços anti-China, refletindo as crescentes tensões entre as visões de mundo da direita estadunidense e os interesses concretos de parte das elites latino-americanas.
Embora compartilhem a visão de combate às forças progressistas e mantenham laços com os setores mais conservadores dos Estados Unidos, tais líderes representam também frações das elites econômicas nacionais que, em muitos casos, dependem do sucesso das relações com a China.
Ainda assim, é inegável que os Estados Unidos exercem muito mais controle sobre Noboa e Bukele do que sobre seus contendores diretos — a Revolución Ciudadana, no Equador, e a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), em El Salvador. Por isso, os serviços diplomáticos e de inteligência dos Estados Unidos não hesitaram em dar apoio explícito a medidas ilegais e suspeitas que marcaram as eleições que reconduziram Daniel Noboa à presidência, apesar das veementes acusações de fraude por parte da oposição.
4.
A tentativa de redesenhar o cenário político da região passa diretamente pelos resultados das eleições deste e do próximo ano, com capítulos decisivos em países como Bolívia, Chile, Honduras, Colômbia e Brasil — onde os Estados Unidos apostarão em derrotar um amplo arco de governos progressistas.
A Bolívia é exemplo histórico de intervenções americanas, tendo como episódio recente mais notório a declaração pública de Elon Musk sobre o golpe de 2019 contra Evo Morales. O atual governo de Luis Arce enfrenta dificuldades decorrentes da divisão do Movimiento al Socialismo (MAS), entre seus apoiadores e os de Evo. Nesse cenário, a esperança da direita de retornar ao governo pela via eleitoral depois de mais de vinte anos é visivelmente reforçada pelos interesses estratégicos de Washington.
Nos últimos anos Honduras seguiu caminho alternativo ao que vinha trilhando em tempos passados, estabelecendo relações diplomáticas com a China em 2023, sob a presidência de Xiomara Castro, que agora busca garantir que sua a sua sucessão mantenha um aspecto político progressista e o aprofundamento das relações com os chineses. Em contraste, o provável candidato do Partido Liberal, Salvador Nasralla, já se manifestou publicamente contra um eventual acordo de livre comércio com a China e criticou a ruptura diplomática com Taiwan.
No Chile, a oposição de direita ao governo Boric conta com diversas figuras proeminentes do conservadorismo chileno, entre as quais Johannes Kaiser se destaca por adotar uma retórica libertária e de extrema direita semelhante à de Javier Milei. Enquanto isso, na Colômbia, os esforços dos Estados Unidos para reorientar o país integralmente aos seus interesses estratégicos e comerciais são evidentes. A Colômbia não apenas desempenha um papel-chave como parceiro comercial, mas também como ponto central nas tentativas de isolar a Venezuela e conter a expansão da influência chinesa na América do Sul.
O Brasil será provavelmente o palco da mais importante das batalhas eleitorais na região. O presidente Lula buscará a reeleição diante de um candidato ainda indefinido, mas que terá o apoio de Jair Bolsonaro, atualmente inelegível.
Não se pode esquecer que, ao longo do último mandato de Jair Bolsonaro, o Brasil se retirou oficialmente da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), além de ter promovido o esvaziamento completo da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e de outras relevantes entidades regionais que haviam ganhado força nos anos anteriores.
Os bolsonaristas são aliados inequívocos do trumpismo, e não são raras as manifestações em que desfilam com bandeiras dos Estados Unidos e de Israel em solo brasileiro. Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, está desde março licenciado do cargo de deputado federal para permanecer nos Estados Unidos, onde articula estratégias conjuntas com o círculo próximo de Donald Trump.
5.
Por fim, as sanções pesadas e contínuas dos Estados Unidos contra Cuba, Nicarágua e Venezuela foram ainda mais intensificadas no início do novo mandato de Trump, com o objetivo de criar fissuras nos governos desses países e fortalecer forças políticas e sociais reacionárias que anseiam pelo sucesso das táticas de “mudança de regime”.
É inegável que esses dois elementos — o aumento da pressão diplomática sobre os governos latino-americanos e os esforços para reconfigurar a correlação de forças com o apoio aos elementos reacionários — compõem o núcleo da estratégia do governo Donald Trump para a região. Os objetivos fundamentais são debilitar os laços da América Latina com a China e conter a nova ascensão de governos progressistas.
Os acontecimentos recentes, no entanto, revelam fragilidades importantes dessa estratégia. O unilateralismo, a imposição de tarifas e as chantagens utilizadas pelos Estados Unidos têm gerado certas desconfianças e desacordos nos vínculos com alguns dos países com que tem maior proximidade. Aliados de Trump como Noboa e Bukele têm mostrado reticência em endossar plenamente a ofensiva anti-China, e outros governos conservadores, como o de Dina Boluarte no Peru, parecem determinados a não embarcar na retórica da “nova Guerra Fria”.
A ofensiva estadunidense tem levado mesmo alguns dos governos progressistas a radicalizar suas posições diante do hegemonismo de Washington, como mostra o tom adotado por Gustavo Petro ao anunciar a adesão da Colômbia à Iniciativa Cinturão e Rota.
Ainda assim, esses movimentos não representam um desfecho definitivo do embate. Como demonstra claramente o caso do Panamá, a pressão dos Estados Unidos também tem produzido resultados favoráveis aos seus interesses.
Apesar de o Brasil estar aprofundando as relações com a China, é evidente que as pressões estadunidenses desempenharam um papel fundamental para que o país não anunciasse formalmente sua adesão à Iniciativa Cinturão e Rota — gesto que teria elevado o simbolismo da aproximação bilateral.
A postura agressiva dos Estados Unidos em favor de mudanças de regime e desestabilização de governos progressistas caminha lado a lado com o apoio resoluto a forças reacionárias de extrema direita. As fraudes recentes a favor de Daniel Noboa no Equador são apenas um sinal de que se avizinha um período de crescentes dificuldades políticas e eleitorais para as forças progressistas no cenário regional.
Dito isso, é evidente que o mundo caminha rapidamente para transformações estruturais que vêm ampliando os espaços de manobra política e econômica dos países em desenvolvimento. Os ventos vindos dos recentes encontros em Moscou e Pequim são sinais inequívocos de um mundo multipolar em ascensão.
Nesse contexto, a relação entre a América Latina e a China tornou-se cada vez mais imprescindível, como demonstram de forma clara os resultados do 4º Fórum China–CELAC, que ressaltaram uma visão comum de desenvolvimento, multilateralismo e cooperação Sul-Sul. Fortalecer esses vínculos não é um gesto diplomático meramente formal, mas uma necessidade vital para assegurar a autonomia e o futuro da região.
No entanto, é preciso reconhecer que a derrota definitiva do imperialismo na América Latina não virá apenas por meio da atuação internacional dos governos nacionais – por mais importante que ela seja. Ela dependerá também da capacidade das forças progressistas e populares de resistir, em âmbito nacional, à histórica aliança entre elites oligárquicas entreguistas e os falcões de Washington, que seguem trabalhando para manter vivo o fantasma da doutrina Monroe.
[Artigo tirado do sitio web brasileiro aterraéredonda, do 19 de maio de 2025]