Os saldos pendentes da Segunda Guerra
Gilberto Lopes -
No desfile militar em 3 de setembro último, Xi Jinping apresentou sua visão da nova ordem mundial em cinco pontos para uma Iniciativa de Governança Global: todos os países, independentemente de seu tamanho, força ou riqueza, devem participar e beneficiar-se igualmente da governança global
O mundo assiste a uma nova batalha (a última?) pelos saldos pendentes da Segunda Guerra Mundial, que terminou há 80 anos. Sempre que os protagonistas se reúnem, como aconteceu com o encontro entre os presidentes Vladimir Putin e Donald Trump no Alasca, em 15 de agosto, multiplicam-se as especulações. Como se fosse outra Yalta (fevereiro de 1945) ou outra Potsdam (agosto de 1945), reuniões em que a União Soviética discutiu com os Estados Unidos e a Inglaterra a nova ordem mundial, uma vez concluída a Segunda Guerra Mundial.
Os acordos feitos na época duraram apenas 45 anos, até o fim da Guerra Fria, quando os vencedores dessa (penúltima?) batalha estabeleceram uma nova ordem mundial que destruiu os acordos de Yalta e Potsdam. Fronteiras foram movidas, países desapareceram, uma nova ordem baseada nas regras dos vencedores foi imposta.
Como disse num artigo recente Phillips O’Brien, professor de Estudos Estratégicos na escocesa Universidade de St. Andrews, a partir de 1945 os aliados dos Estados Unidos aceitaram viver num mundo dominado pelos norte-americanos, certos de que isso os protegeria de uma nova guerra. Era o líder do “mundo livre”, como denominavam a si mesmos.
Essas regras já não refletem a realidade do mundo atual, como revela o cenário político mundial. Phillips O’Brien fala, em seu artigo, sobre como construir uma ordem liberal pós-americana. É uma tentativa de prolongar essa ordem liberal, conservadora, sem o papel preponderante de Washington. Os excluídos dessa ordem, os derrotados na Guerra Fria, nunca se sentiram representados por ela. Olham para trás, reivindicam o papel que desempenharam na Segunda Guerra Mundial e exigem uma nova ordem em que isso seja devidamente reconhecido.
Preservar a memória histórica
Esse é o cenário de uma nova etapa dessa guerra, baseada em diferentes visões da história. Para a Rússia e a China, trata-se de recuperar uma memória que se desvaneceu, que não valoriza o sacrifício que fizeram seus povos para derrotar as potências do Eixo, que minimizou seu papel na história. “Os povos da União Soviética e da China carregaram o maior peso da luta e sofreram as maiores perdas”, lembrou Vladimir Putin, em entrevista à agência chinesa Xinhua, dias antes de sua visita à China, no final de agosto.
Na Rússia, acrescentou, “não esquecemos que a resistência heroica da China foi um dos fatores essenciais que impediram o Japão de nos apunhalar pelas costas durante os meses sombrios de 1941 e 1942”, quando as forças alemãs pareciam imparáveis, prestes a conquistar Moscou.
“Nossos antepassados, nossos pais e avós pagaram um preço alto pela paz e pela liberdade. Nós lembramo-nos disso”, disse ele, depois de assinar com seu colega chinês, Xi Jinping, uma declaração sobre a Segunda Guerra Mundial, em 2 de setembro, em Pequim. Era a véspera do desfile militar com que Pequim comemorou os 80 anos do fim dessa guerra.
Essa visão compartilhada sobre o papel de seus países na Segunda Guerra Mundial é vista pelos jornalistas do The New York Times, Lily Kuo e Anton Troianovski, como a base de seu desafio ao Ocidente. Para a Rússia e a China, é o fundamento para a construção de uma “ordem multipolar e justa, focada nas nações da maioria global”.
Estima-se que a guerra da China com o império japonês tenha custado entre 15 e 20 milhões de vidas. A União Soviética perdeu 27 milhões de soldados e civis.
Não se trata apenas de uma preocupação histórica. A visão dos acontecimentos daquela época se projeta hoje no debate sobre a (des)ordem mundial.
A verdade é que apenas por interesse político se pode minimizar a importância dessa participação na guerra, retratada na imagem da bandeira soviética tremulando no telhado do Reichstag no final de abril de 1945. Ou no Treptower Park, onde um monumento ao exército soviético está meio escondido num discreto parque de Berlim. Mas lá está ele (ainda), lembrando essa história.
Isto não é coisa do passado
Este resgate do passado contrasta com a situação em alguns países europeus, “onde os monumentos e túmulos dos libertadores soviéticos são profanados de forma bárbara ou destruídos e os fatos históricos inconvenientes são apagados”, lamentou Vladimir Putin.
“O militarismo japonês está ressurgido sob o pretexto de ameaças imaginárias da Rússia ou da China, enquanto na Europa, incluindo a Alemanha, estão sendo dados passos para a remilitarização do continente, sem levar em conta os antecedentes históricos”, acrescentou.
Para comemorar o 80.º aniversário da vitória da URSS naquilo a que chamam a “Grande Guerra Pátria” e a vitória da China na “Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa”, os dois países assinaram uma Declaração Conjunta sobre o aprofundamento de sua parceria estratégica rumo a uma nova era.
Num artigo publicado pela Brookings Institution, que podemos traduzir como “China e Rússia comemoram a história para reimaginar a ordem internacional”, os acadêmicos Kainan Gao e Margaret M. Pearson afirmam que os dois países “compartilham uma obsessão pela história”.
Trata-se, neste caso, de uma alternativa chinesa à narrativa ocidental sobre a vitória aliada, que destaca principalmente seu próprio papel no conflito.
O artigo faz uma análise dos diferentes instrumentos jurídicos que foram moldando a ordem internacional após a Segunda Guerra Mundial e das diferentes interpretações que as partes fazem desses documentos, em particular da Declaração do Cairo, de 1943; da Proclamação de Potsdam, de 1945, e do Tratado de Paz de São Francisco, de 1951.
Tudo isso tem a ver, entre outros temas atuais, com o direito da China sobre Taiwan e outras ilhas do Pacífico e sobre os mares da China Oriental e Meridional. À medida que a Guerra Fria se instalava no mundo, “e a ameaça do comunismo na Ásia crescia, os Estados Unidos perderam o interesse em sancionar o Japão”, afirmam.
Na verdade, tinham feito o mesmo na Alemanha, onde antigos nazistas se juntaram ao governo de Konrad Adenauer, enquanto cientistas alemães contribuíam para o desenvolvimento da bomba atômica nos Estados Unidos.
“O desacordo entre a China e os Estados Unidos sobre a fonte legítima do direito internacional está relacionado com suas diferentes percepções sobre as origens da ordem internacional do pós-guerra”, afirmam. “Os Estados Unidos entenderam-na como uma ordem mundial liberal, enquanto a China a interpreta como uma ordem do pós-guerra”.
Construindo uma nova ordem
O desfile militar da China em 3 de setembro – dizem Kainan e Pearson – “foi organizado, em parte, para relembrar as contribuições e sacrifícios da China durante a Segunda Guerra Mundial” e defender, assim, “a ordem internacional imediatamente após a Segunda Guerra Mundial”.
Xi Jinping apresentou sua visão dessa nova ordem mundial em cinco pontos para uma Iniciativa de Governança Global. Todos os países, independentemente de seu tamanho, força ou riqueza, devem participar e beneficiar-se igualmente da governança global, afirmou.
Vale a pena registrar aqui a opinião do fundador da gigante russa do alumínio, Oleg Deripaska, citado por Laura Zhou no South China Morning Post, jornal de Hong Kong: “Um sistema de pagamento baseado no yuan é crucial para construir o mundo multipolar que a China vem pedindo”, afirma, apontando um aspecto fundamental para o desenvolvimento desse projeto.
“Para tornar-se uma potência global”, acrescentou, “a China deverá acelerar seus esforços para expandir um mercado de dívida baseado no yuan e impulsionar o uso da moeda chinesa nas liquidações financeiras internacionais”.
A proposta de criação de uma “nova ordem” mundial provocou rios de tinta nos meios de comunicação internacionais.
Alexandra Sharp comentou, nas páginas conservadoras da Foreign Policy, que, com uma cúpula de dois dias centrada em impulsionar o investimento no leste asiático e um desfile militar com convidados de alto nível, Pequim pretendia “indicar o surgimento de um novo mundo multipolar moldado em grande parte pela China e seus aliados”.
Antoaneta Roussi disse no Politico que a cúpula realizada em Tianjin com países da Eurásia e o desfile militar em Pequim foram concebidos para consolidar sua influência e defender a visão de uma “ordem mundial multipolar”.
A postura de Pequim é contundente, afirmam os meios de comunicação russos. Trata-se de “rejeitar os blocos da Guerra Fria e restaurar o sistema da ONU como única base jurídica universal”. Isto pressupõe uma crítica direta à “ordem internacional baseada em regras” imposta pelo Ocidente após a Guerra Fria.
O Ocidente teve seu século, o futuro agora pertence a esses líderes, na opinião de Farhad Ibragimov, analista especializado no espaço pós-soviético. Tarik Cyril Amar, um acadêmico que leciona no Departamento de História da Universidade Koc, em Istambul, tem uma opinião semelhante, para quem “está surgindo de forma imparável uma nova ordem mundial centrada na Eurásia e no Sul Global”.
Em tom mais polêmico, Fyodor Lukyanov, editor-chefe da Russia Global Affairs e diretor do Clube Valdai, compara as mudanças atuais com as que ocorreram no final da Guerra Fria. Ronald Reagan pôs fim à Guerra Fria nos termos de Washington, consolidando seu papel como única superpotência. “Donald Trump e Vladimir Putin estão pondo um ponto final nesse período. A era unipolar chegou ao fim”.
A modo de coda
Se essas são as raízes dos conflitos atuais, não menos complexo é decifrar os sinais de um mundo em que as antigas alianças foram destruídas e o papel dos atores no cenário internacional sofreu transformações raramente vistas nos últimos anos.
O papel renovado da China e da Rússia nesse cenário é o primeiro elemento a destacar. Mas é no “outro lado”, no Ocidente, onde tudo parece menos ortodoxo, onde é mais difícil acompanhar as expressões muito diversas dessas novas políticas.
Como disse Peter Baker no New York Times em 14 de setembro, “numa era de profunda polarização, a unidade não é a missão de Donald Trump”. Referimo-nos, por exemplo, ao distanciamento entre Washington e Bruxelas; ao critério de aplicação por Washington de tarifas a antigos aliados; ou à renovada retórica de uma política agressiva em relação à América Latina, que parece difícil de sustentar no cenário internacional atual. E à situação cada vez mais insustentável de um país cuja dívida já se aproxima dos 37 trilhões de dólares, quase tão grande quanto a de outros países com economias avançadas.
Mas não é só isso. O barulhento cenário internacional por vezes varre para debaixo do tapete a situação pela qual passam algumas das principais nações europeias.
O britânico Keir Stamer afunda nas pesquisas, sem conseguir cumprir suas promessas de campanha. Algo semelhante enfrenta o alemão Friedrich Merz, cujo plano para recuperar a economia alemã também não encontra formas de arrancar, enquanto o presidente francês vê cair seu sexto primeiro-ministro, depois que uma proposta para enfrentar o déficit fiscal e a crescente dívida pública por meio de cortes orçamentários provocou a queda do governo de François Bayrou.
Mas, no clima atual, “onde há uma crise tão profunda, o fato desses líderes estarem politicamente enfraquecidos em casa não importa tanto”, na opinião de Peter Ricketts, ex-conselheiro de segurança nacional britânico e ex-embaixador na França.
“Keir Starmer, Friedrich Merz e Emmanuel Macron são belicistas insuportáveis”, disse o economista norte-americano Jeffrey Sachs. Eles estão unidos por seu espírito guerreiro diante da Rússia. Uma ameaça arriscada para um mundo que já viveu duas guerras mundiais em pouco mais de um século. E que vê, mais uma vez, a Alemanha e o Japão armarem-se, onde políticos e militares marcam a data para uma guerra que se transformou num instrumento de sobrevivência política.
Por quanto tempo esses líderes poderão defender seu projeto de aumento de gastos militares? Para isso, terão que manter viva a ideia da “ameaça russa”, que Moscou qualifica de histeria sem sentido, reiterando que não tem qualquer intenção de atacar países europeus.
[Artigo tirado do sitio web brasileiro aterraéredonda, do 23 de setembro de 2025]

