Radiografia do capitalismo armado

Maurizio Lazzarato -

A União Europeia quer captar e canalizar a poupança continental para o armamento, com consequências catastróficas para o proletariado e uma maior divisão da União Europeia. A corrida armamentista não funcionará como “keynesianismo de guerra”, porque o investimento em armas ocorre em uma economia financeirizada e não mais industrial

“Por maior que seja uma nação, se amar a guerra, perecerá; por mais pacífico que seja o mundo, se esquecer a guerra, estará em perigo” (Wu Zi, antigo tratado militar chinês).

“Quando falamos de sistema de guerra, referimo-nos a um sistema como o vigente, que assume a guerra, mesmo que apenas planejada e não combatida, como fundamento e ápice da ordem política, ou seja, da relação entre os povos e entre os homens. Um sistema em que a guerra não é um acontecimento, mas uma instituição; não uma crise, mas uma função; não uma ruptura, mas uma pedra angular do sistema, uma guerra sempre obsoleta e exorcizada, mas nunca abandonada como possibilidade real” (Claudio Napoleoni, 1986).

 A ascensão de Trump é apocalíptica, no sentido literal do termo: revelar o que está oculto, remover o véu, desvelar. Sua convulsiva agitação tem o grande mérito de expor a natureza do capitalismo, a relação entre guerra, política e lucro, entre capital e Estado — normalmente encoberta pela democracia, pelos direitos humanos, pelos valores e pela missão da civilização ocidental.

 A mesma hipocrisia está coração da narrativa construída para legitimar os 840 bilhões de euros para o rearmamento que a União Europeia impõe aos Estados-membros mediante o estado de exceção. Armar-se não significa, como afirma Draghi, defender “os valores que fundaram nossa sociedade europeia” e que “garantiram durante décadas a seus cidadãos a paz, a solidariedade e, com o aliado estadunidense, a segurança, a soberania e a independência”, mas sim salvar o capitalismo financeiro.

 Nem mesmo são necessários grandes discursos ou análises detalhadas para desmascarar a pobreza dessas narrativas: bastou outro massacre de 400 civis palestinos para revelar a verdade do indecente palavrório sobre a singularidade e a supremacia moral e cultural do Ocidente.

 Trump não é um pacifista; limita-se a reconhecer a derrota estratégica da Otan na guerra da Ucrânia, enquanto as elites europeias rejeitam a evidência. Para eles, a paz significaria retornar ao estado catastrófico ao qual reduziram suas nações. A guerra deve continuar porque, para eles — assim como para os democratas e o deep state estadunidense —, é a forma de sair da crise iniciada em 2008, como já ocorreu com a grande crise de 1929.

 Trump pretende resolver a questão privilegiando a economia sem renunciar à violência, à chantagem, à intimidação, à guerra. É muito provável que nem ele nem os outros tenham sucesso na tentativa, pois enfrentam um enorme problema: o capitalismo, em sua forma financeira, está em profunda crise, e justamente de seu centro, os Estados Unidos, chegam sinais “dramáticos” para as elites que nos governam. Em vez de convergir para os EUA, os capitais fogem para a Europa. Grande novidade, sintoma de rupturas imprevisíveis que arriscam ser catastróficas.

 O capital financeiro não produz mercadorias, mas bolhas que se inflam todas nos EUA e estouram em detrimento do resto do mundo, revelando-se armas de destruição em massa. O sistema financeiro estadunidense captura valor (capitais) de todo o mundo, investe-o em uma bolha que, cedo ou tarde, estourará, forçando os povos do planeta à austeridade e ao sacrifício para pagar seus fracassos: primeiro foi a bolha da internet, depois a bolha das subprimes, que provocou uma das maiores crises financeiras da história do capitalismo, abrindo as portas para a guerra. Tentaram até mesmo a bolha do capitalismo verde, que nunca decolou, e, por fim, a incomparavelmente maior bolha das empresas de high tech.

 Para tapar os buracos dos desastres da dívida privada transferida para a dívida pública, o Federal Reserve e os bancos europeus inundaram os mercados com liquidez que, em vez de “derramar” na economia real, serviu para alimentar a bolha das high tech e o desenvolvimento dos fundos de investimento conhecidos como Big Three, Vanguard, BlackRock e State Street (o maior monopólio da história do capitalismo, gerindo 50 trilhões de dólares, acionista majoritário das maiores empresas listadas). Agora, até mesmo essa bolha está murchando.

 Se dividirmos pela metade toda a capitalização da lista da Bolsa de Wall Street, ainda estaremos muito longe do valor real das empresas de high tech, cujas ações foram infladas pelos próprios fundos para manter altos os dividendos de seus “poupadores” (os democratas chegaram a planejar substituir o welfare por finanças para todos, assim como antes haviam delirado com moradia para todos os estadunidenses).

 Agora, a diversão chega ao fim. A bolha atingiu seu limite, e os valores caem com risco real de colapso. Se acrescentarmos a isso a incerteza que as políticas de Trump — representante de finanças que não são as dos fundos de investimento — introduzem em um sistema que eles haviam conseguido estabilizar com a ajuda dos democratas, compreendemos o temor dos “mercados”. O capitalismo ocidental precisa de outra bolha porque não conhece senão a reprodução do mesmo de sempre (a tentativa trumpiana de reconstruir a indústria manufatureira nos EUA está destinada ao fracasso).

A identidade perfeita entre “produção” e destruição

 A Europa, que já gasta hoje mais de 60% do que a Rússia gasta em armamentos (a Otan representa 55% do gasto militar mundial; a Rússia, 5%), decidiu fazer um importante plano de investimento de 800 bilhões de euros para continuar aumentando os gastos militares.

 A guerra e a Europa — onde ainda estão ativas as redes políticas e econômicas, centros de poder ligados à estratégia representada por Biden, derrotada nas últimas eleições presidenciais — são a oportunidade para construir uma bolha baseada em armamentos, compensando as crescentes dificuldades dos “mercados” estadunidenses.

 Desde dezembro, as ações das empresas de armamentos são objeto de especulação, subindo incessantemente e servindo de refúgio seguro para os capitais que veem a situação estadunidense como demasiado arriscada. No centro da operação estão os fundos de investimento, que também figuram entre os principais acionistas das grandes empresas armamentistas. Detêm participações significativas na Boeing, Lockheed Martin e RTX, influenciando a gestão e as estratégias dessas empresas.

 Também na Europa estão presentes no complexo militar-industrial: a Rheinmetall, empresa alemã que fabrica os tanques Leopard e viu o preço de suas ações subir 100% nos últimos meses, tem como principais acionistas a BlackRock, Société Générale, Vanguard etc. A Rheinmetall, maior fabricante de munições da Europa, superou em capitalização a maior montadora de automóveis do continente, a Volkswagen — o último sinal do crescente apetite dos investidores por valores ligados à defesa.

 A União Europeia quer captar e canalizar a poupança continental para o armamento, com consequências catastróficas para o proletariado e uma maior divisão da União Europeia. A corrida armamentista não funcionará como “keynesianismo de guerra”, porque o investimento em armas ocorre em uma economia financeirizada e não mais industrial. Construída com dinheiro público, beneficiará uma pequena minoria de particulares, enquanto piora as condições da imensa maioria da população.

 A bolha armamentista só pode produzir os mesmos efeitos que a bolha das empresas high tech estadunidenses. Após 2008, as somas de dinheiro captadas para investimento na bolha high tech nunca “derramaram” para o proletariado estadunidense. Pelo contrário, produziram uma desindustrialização crescente, empregos precários e pouco qualificados, salários baixos, pobreza galopante, a destruição do escasso Welfare herdado do New Deal e a posterior privatização de todos os serviços. Isso é o que, sem dúvida, a bolha financeira europeia produzirá na Europa.

 A financeirização levará não apenas à destruição completa do Estado de Bem-Estar e à privatização radical dos serviços, mas também a uma maior fragmentação política do que resta da União Europeia. As dívidas, contraídas por cada Estado separadamente, terão de ser reembolsadas, e haverá enormes diferenças entre os Estados europeus em sua capacidade de honrar as dívidas contraídas.

 O verdadeiro perigo não são os russos, mas os alemães, com seu rearmamento de 500 bilhões de euros e outros 500 bilhões para infraestruturas, uma financiamento decisivo na construção da bolha.

 A última vez que se armaram, combinaram-se desastres mundiais (25 milhões de mortos apenas na Rússia soviética, a solução final etc.), de onde surgiu a famosa declaração de François Mauriac: “Gosto tanto da Alemanha que me alegro que haja duas”. À espera dos desdobramentos do nacionalismo e da extrema-direita, já em 21%, que inevitavelmente produzirá o “Deutschland ist zurück” [A Alemanha está de volta], a Alemanha imporá sua habitual hegemonia imperialista aos demais países europeus.

 Os alemães abandonaram rapidamente o credo ordoliberal — que não tinha base econômica, apenas política — e abraçam radicalmente a financeirização anglo-americana, com o mesmo objetivo: dominar e explorar a Europa.

 O Financial Times fala de uma decisão tomada por Friedrich Merz, o homem da BlackRock, e Jörg Kukies, o ministro do Tesouro, homem da Goldman Sachs, com o aval dos partidos de “esquerda” SPD e Die Linke que, como seus predecessores em 1914, assumem mais uma vez a responsabilidade pela futura carnificina.

 Disso tudo, que por ora ainda é um projeto, apenas o financiamento alemão parece ter certa credibilidade. Quanto aos demais Estados, veremos quem terá a coragem de cortar pensões, saúde, educação etc. de forma ainda mais radical, por uma ameaça inventada. A Alemanha é o único país europeu que pode realizar a conversão da indústria civil para a militar. Sua hegemonia sobre a Europa não será mais apenas econômica.

 Se o anterior imperialismo interno alemão baseava-se na austeridade, no mercantilismo exportador, no congelamento salarial e na destruição do Estado de Bem-Estar, este estará fundado na gestão de uma economia de guerra europeia hierarquizada pelas taxas de interesse diferenciais a pagar para quitar a dívida contraída.

 Os países já altamente endividados (Itália, França etc.) terão de encontrar quem compre seus títulos emitidos para pagar suas dívidas, em um “mercado” europeu cada vez mais competitivo. Aos investidores, convirá mais comprar títulos alemães, títulos emitidos por empresas armamentistas — alvo de especulação em alta — e títulos da dívida pública europeia, sem dúvida mais seguros e rentáveis que os dos países superendividados.

 O famoso spread (“diferencial”) continuará desempenhando seu papel, como em 2011. Os bilhões necessários para pagar os mercados não estarão disponíveis para o Estado de Bem-Estar. O objetivo estratégico de todos os governos e oligarquias nos últimos cinquenta anos — a destruição dos gastos sociais para a reprodução do proletariado e sua privatização — será alcançado.

 Vinte e sete egoísmos nacionais lutarão entre si sem nada em jogo, porque a história, que “somos os únicos que sabemos o que é”, nos encurralou, inúteis e irrelevantes após séculos de colonialismo, guerras e genocídios.

 A corrida armamentista vem acompanhada de uma insistente justificativa de “estamos em guerra” contra todo o mundo (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, Brics), que não pode ser abandonada e corre o risco de se concretizar, pois essa quantidade delirante de armas ainda precisa ser “consumida”.

A lição de Rosa Luxemburgo, Kalecki, Baran e Sweezy

 Apenas os ingênuos podem se surpreender com o que está ocorrendo. Tudo se repete, só que dentro de um capitalismo financeiro — e não mais industrial, como no século XX.

 A guerra e o armamento estão no centro da economia e da política desde que o capitalismo se tornou imperialista. E são também o centro do processo de reprodução do capital e do proletariado, em feroz competição entre si.

 Reconstruamos rapidamente o marco teórico fornecido por Rosa Luxemburgo, Kalecki, Baran e Sweezy — firmemente ancorado (em contraste com as inúteis teorias críticas contemporâneas) nas categorias de imperialismo, monopólio e guerra —, que nos oferece um espelho da situação contemporâneo.

 Comecemos pela crise de 1929, que teve suas raízes na Primeira Guerra Mundial e na tentativa de sair dela ativando os gastos públicos mediante a intervenção do Estado. Segundo Baran e Sweezy (doravante, B&S), o problema dos gastos públicos nos anos 1930 era seu volume, incapaz de neutralizar as forças depressivas da economia privada.

 “Visto como uma operação de resgate da economia estadunidense como um todo, o New Deal foi, portanto, um fracasso estrondoso. Até Galbraith, o profeta da prosperidade sem compras bélicas, reconheceu que, na década de 1930-1940, ‘a grande crise’ nunca terminava”.

 Só sairá com a Segunda Guerra Mundial: “Logo veio a guerra, e com a guerra, a salvação (…) os gastos militares fizeram o que os gastos sociais não haviam conseguido fazer”, pois os gastos públicos saltaram de 17,5 bilhões de dólares para 103,1 bilhões.

 B&S demonstram que os gastos públicos não deram os mesmos resultados que os militares porque estavam limitados por um problema político que ainda é o nosso. Por que o New Deal e seus gastos não alcançaram um objetivo que ‘estava ao alcance da mão, como a guerra mais tarde mostrou’?

 Porque, sobre a natureza e a composição dos gastos públicos, ou seja, a reprodução do sistema e do proletariado, desencadeia-se a luta de classes.

 “Dada a estrutura de poder do capitalismo monopolista estadunidense, o aumento dos gastos civis quase havia atingido seus limites extremos. As forças que se opunham a uma maior expansão eram poderosas demais para serem superadas”.

 Os gastos sociais competiam ou prejudicavam as corporações e oligarquias, arrancando-lhes poder econômico e político. “Como os interesses privados controlam o poder político, os limites dos gastos públicos são fixados rigidamente, sem preocupação com as necessidades sociais, por mais vergonhosamente óbvias que sejam”. E esses limites valiam também para saúde e educação, que, na época, ao contrário de hoje, não competiam diretamente com os interesses privados das oligarquias.

 A corrida armamentista permite aumentar os gastos públicos do Estado sem que isso se transforme em aumento de salários e consumo do proletariado. Como gastar o dinheiro público para evitar a depressão econômica trazida pelo monopólio, sem ao mesmo tempo fortalecer o proletariado? “Com armamentos, com mais armamentos, com mais e mais armamentos”.

 Michael Kalecki, trabalhando sobre o mesmo período, mas na Alemanha nazista, consegue elucidar outros aspectos do problema. Contra todo economicismo que sempre ameaça a compreensão do capitalismo — mesmo pelas teorias críticas marxistas —, evidencia a natureza política do ciclo do capital: “A disciplina nas fábricas e a estabilidade política são mais importantes para os capitalistas do que os lucros imediatos’”.

 O ciclo político do capital, que agora só pode ser garantido pela intervenção do Estado, precisa recorrer aos gastos armamentistas e ao fascismo. Para Kalecki, o problema político também se manifesta na “direção e nos fins do gasto público”. A aversão ao “subsídio do consumo de massas” é motivada pela destruição que provoca “dos fundamentos da ética capitalista ‘ganharás o pão com o suor do teu rosto’ (a menos que vivas das rendas do capital)”. Como evitar que o gasto estatal se transforme em aumento do emprego, do consumo e dos salários e, portanto, em força política do proletariado?

 O inconveniente para as oligarquias é superado com o fascismo, pois a máquina estatal passa então ao controle do grande capital e da direção fascista, com “a concentração do gasto estatal em armamento”, enquanto “a disciplina fabril e a estabilidade política são garantidas pela dissolução dos sindicatos e pelos campos de concentração. A pressão política substitui aqui a pressão econômica do desemprego”.

 Daí o imenso sucesso dos nazistas entre a maioria dos liberais britânicos e estadunidenses.

 A guerra e o gasto em armamento ocupam um lugar central na política estadunidense, mesmo após o fim da Segunda Guerra Mundial, porque é inconcebível uma estrutura política sem uma força armada, ou seja, sem o monopólio de seu exercício.

 O volume do aparato militar de uma nação depende de sua posição na hierarquia mundial de exploração. “As nações mais importantes sempre necessitarão o máximo, e a magnitude de sua necessidade (de força armada) variará conforme exista ou não uma luta intensa entre elas pelo primeiro lugar”.

 Assim, o gasto militar segue crescendo no centro do imperialismo: “Naturalmente, a maior parte da expansão do gasto público ocorreu no setor militar, que passou de menos de 1% para mais de 10% do PNB, representando cerca de dois terços do aumento total do gasto público desde 1920. Essa absorção massiva do excedente em preparativos militares tem sido o fato central da história estadunidense do pós-guerra”.

 Kalecki observa que, em 1966, “mais da metade do crescimento da renda nacional se traduziu no aumento dos gastos militares”.

 Agora, no pós-guerra, o capitalismo já não pode contar com o fascismo para controlar o gasto social. O economista polonês, “discípulo” de Rosa Luxemburgo, observa: “Uma das funções fundamentais do hitlerismo foi superar a aversão do grande capital à política anticíclica em larga escala. A grande burguesia havia consentido com o abandono do laissez-faire e com o aumento radical do papel do Estado na economia nacional, desde que o aparato estatal estivesse sob o controle direto de sua aliança com a direção fascista” e que o destino e o conteúdo do gasto público fossem determinados pelo armamento.

 Nos Trinta Gloriosos, sem o fascismo para garantir a direção do gasto público, os Estados e os capitalistas foram forçados a um compromisso político. Relações de poder determinadas pelo século das revoluções obrigam o Estado e os capitalistas a concessões que, em todo caso, são compatíveis com lucros que atingem taxas de crescimento nunca antes vistas. Mas mesmo esse compromisso é excessivo porque, apesar dos grandes lucros, “nessa situação os trabalhadores se tornam ‘recalcitrantes’ e os ‘capitães da indústria’ mostram-se ansiosos para ‘dar-lhes uma lição'”.

 A contrarrevolução, desencadeada a partir do final dos anos 60, terá como eixo central a destruição do gasto social e a feroz determinação de orientar o gasto público para os interesses únicos e exclusivos das oligarquias. O problema, desde a República de Weimar, nunca foi uma intervenção genérica do Estado na economia, mas sim o fato de o Estado ter sido permeado pela luta de classes e forçado a ceder às exigências das lutas operárias e proletárias.

 Nos tempos “pacíficos” da Guerra Fria, sem a ajuda do fascismo, a explosão do gasto militar necessita de uma legitimação, garantida por uma propaganda capaz de evocar continuamente a ameaça de uma guerra iminente, de um inimigo às portas disposto a destruir os valores ocidentais:
 “Os criadores oficiosos e oficiais da opinião pública têm a resposta pronta: os Estados Unidos devem defender o mundo livre da ameaça de agressão soviética (ou chinesa)”.

Kalecki, sobre o mesmo período, esclarece: “Os jornais, o cinema, o rádio e a televisão, que operam sob a égide da classe dominante, criam uma atmosfera que favorece a militarização da economia”.

 O gasto em armamento não tem apenas uma função econômica, mas também de produção de subjetividades submissas. A guerra, ao exaltar a subordinação e o comando, “contribui para criar uma mentalidade conservadora”.

 “Enquanto o gasto público massivo em educação e bem-estar tende a minar a posição privilegiada da oligarquia, o gasto militar faz o contrário. A militarização favorece todas as forças reacionárias (…) determina-se um respeito cego à autoridade; ensina-se e impõe-se um comportamento de conformidade e submissão; e a opinião contrária é considerada um ato antipatriótico ou diretamente uma traição”.

 O capitalismo produz um capitalista que, precisamente pela forma política de seu ciclo, é um semeador de morte e destruição, mais que um promotor do progresso. Richard B. Russell, um senador conservador do sul dos Estados Unidos nos anos 60 citado por B&S, nos diz:

 “Há algo nos preparativos para a destruição que leva os homens a gastar dinheiro com mais descuido do que se fosse para fins construtivos. Não sei por que isso ocorre; mas durante os trinta anos que estou no Senado, mais ou menos, compreendi que, ao comprar armas para matar, destruir, apagar cidades da face da terra e eliminar grandes sistemas de transporte, há algo que faz com que os homens não calculem os gastos com o mesmo cuidado que quando se trata de pensar em moradia digna e atenção sanitária para os seres humanos”.

 A reprodução do capital e do proletariado se politizou com as revoluções do século XX. A luta de classes, permeando também essa realidade, fez emergir uma oposição radical entre a reprodução da vida e a reprodução de sua destruição que, desde os anos 1930, só tem se aprofundado.

 Ao final da lição, podemos dizer que não há transição do Welfare para o Warfare porque o gasto público sempre foi, ao mesmo tempo, civil e militar. James O’Connor falou, corretamente, de Warfare-Welfar

Como funciona o capitalismo?

 A guerra e o armamento, praticamente excluídos de todas as teorias críticas do capitalismo, funcionam como discriminadores na análise do capital e do Estado. É muito difícil definir o capitalismo como um “modo de produção”, como fez Marx, porque a economia, a guerra, a política, o Estado e a tecnologia são elementos estreitamente entrelaçados e inseparáveis.

 A “crítica da economia” não basta para produzir uma teoria revolucionária. Já com o advento do imperialismo ocorreu uma mudança radical no funcionamento do capitalismo e do Estado, posto em evidência claramente por Rosa Luxemburgo, para quem a acumulação tem dois aspectos.

 O primeiro “se refere à produção de mais-valia – na fábrica, na mina, na exploração agrícola – e à circulação de mercadorias no mercado. Considerada desse ponto de vista, a acumulação é um processo econômico cuja fase mais importante é uma transação entre o capitalista e o assalariado”.

 O segundo aspecto tem como teatro o mundo inteiro, uma dimensão mundial irredutível ao conceito de “mercado” e suas leis econômicas. “Aqui os métodos empregados são a política colonial, o sistema internacional de créditos, a política de esferas de interesse, a guerra. A violência, o engano, a opressão, a depredação se desenvolvem abertamente, sem máscaras, e é difícil reconhecer as estritas leis do processo econômico no entrelaçamento da violência econômica e da brutalidade política”.

 A guerra não é uma continuação da política, mas sempre coexiste com ela, como mostra o funcionamento do mercado mundial. Aqui, onde a guerra, a fraude e a depredação coexistem com a economia, a lei do valor nunca funcionou realmente. O mercado mundial tem um aspecto muito diferente do esboçado por Marx. Suas considerações parecem não mais válidas, ou melhor dizendo, devem ser precisadas: só no mercado mundial o dinheiro e o trabalho se tornariam adequados a seu conceito, tornando realidade sua abstração e sua universalidade. Ao contrário, o que podemos constatar é que o dinheiro, a forma mais abstrata e universal do capital, é sempre a moeda de um Estado. O dólar é a moeda dos Estados Unidos e reina apenas enquanto tal.

 A abstração do dinheiro e sua universalidade (e seus automatismos) são apropriados por uma “força subjetiva” e geridos segundo uma estratégia que não está contida no dinheiro. Mesmo a finança, como a tecnologia, parece ser objeto de apropriação por forças subjetivas “nacionais”, muito pouco universais.

 No mercado mundial, nem mesmo o trabalho abstrato triunfa como tal, encontrando em seu lugar outros trabalhos radicalmente diversos (trabalho servil, trabalho escravo, etc.) e sendo objeto de estratégias.

 A ação de Trump, caído o véu hipócrita do capitalismo democrático, nos revela o segredo da economia: ela só pode funcionar a partir de uma divisão internacional da produção e da reprodução definida e imposta politicamente, ou seja, mediante o uso da força, que implica também a guerra.

 A vontade de explorar e dominar, gerindo simultaneamente as relações políticas, econômicas e militares, constrói uma totalidade que nunca pode fechar-se sobre si mesma, permanecendo sempre aberta, cindida por conflitos, guerras e depredações. Nesta totalidade cindida, convergem e são governadas todas as relações de poder.

 Trump intervém no uso das palavras, mas também nas teorias de gênero, ao mesmo tempo em que quer impor um novo posicionamento global, político e econômico dos Estados Unidos. Do micro ao macro, uma ação política que os movimentos contemporâneos estão longe sequer de conceber.

 A construção da bolha financeira, processo que podemos acompanhar passo a passo, ocorre do mesmo modo. Os atores que intervêm em sua produção são múltiplos: a União Europeia, os Estados que precisam se endividar, o Banco Europeu, o Banco de Investimentos europeus, os partidos políticos, os meios de comunicação e a opinião pública, os grandes fundos de investimento (todos estadunidenses) que organizam a transferência de capitais de uma Bolsa a outra, e as grandes empresas.

 Só depois que o choque/cooperação entre esses centros de poder tiver dado seu veredito, a bolha econômica e seus automatismos poderão funcionar. Há toda uma ideologia sobre o funcionamento automático que precisa ser desmentida. O “piloto automático”, sobretudo no nível financeiro, existe e funciona apenas depois de ter sido instituído politicamente. Não existia nos Trinta Gloriosos porque se decidiu politicamente nesse sentido. Funciona desde o final dos anos 1970 por vontade política explícita.

 Essa multiplicidade de atores que há meses se agitam mantém-se unida por uma estratégia. Há, pois, um elemento subjetivo que intervém de maneira fundamental. Na verdade, dois. Do ponto de vista capitalista, há uma luta feroz entre o “fator subjetivo” Trump e o “fator subjetivo” das elites que foram derrotadas nas eleições presidenciais, mas que ainda têm forte presença nos centros de poder nos Estados Unidos e Europa.

 Mas para que o capitalismo funcione, devemos levar em conta também um fator subjetivo proletário. Este desempenha um papel decisivo porque, ou se tornará o portador passivo do novo processo de produção/reprodução do capital, ou tenderá a rejeitá-lo e destruí-lo. Constatada a incapacidade do proletariado contemporâneo, o mais fraco, o mais desorientado, o menos autônomo e independente da história do capitalismo, a primeira opção parece a mais provável.

 Mas se não conseguir opor sua própria estratégia às constantes inovações estratégicas do inimigo, capazes de se renovar continuamente, cairemos numa assimetria das relações de poder que nos fará retroceder a antes da Revolução Francesa, a um novo/já visto ancien régime.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro Outras Palavras, do 5 de xuño de 2025]

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