Suprimir a verdade sobre a derrota nazi
Prabhat Patnaik -
Com o fascismo a regressar a uma série de países do mundo, até mesmo a celebração da vitória sobre o fascismo, há oito décadas, deixou de ser uma questão prioritária para as potências ocidentais. A maioria dos governos ocidentais ou são eles próprios fascistas, ou estão a planear acordos com partidos fascistas emergentes. Donald Trump pertence à primeira categoria
A Alemanha nazi foi basicamente derrotada pela União Soviética. O sacrifício feito pelo povo soviético em defesa do seu país nessa guerra foi absolutamente inimaginável. No entanto, desde o início que tem havido um esforço por parte das potências ocidentais para obliterar esta verdade e para afirmar que a derrota da Alemanha nazi foi o resultado do seu esforço. No início, a promoção desta narrativa alternativa não passou de um esforço silencioso; e não teve grande impacto junto dos próprios cidadãos dos países ocidentais, e muito menos junto dos intelectuais ocidentais, que tinham vivido diretamente a guerra e sabiam como ela tinha progredido.
Lembro-me pessoalmente da Professora Joan Robinson, a célebre economista keynesiana de esquerda, ter dito em mais de uma ocasião nos seminários de Cambridge, sempre que alguém criticava excessivamente a União Soviética: “Não se esqueçam que, se não fosse a União Soviética, não estaríamos aqui sentados hoje”. Ela era filha de um conhecido general britânico e não era de modo algum pró-comunista, mas esta era a sua percepção, que, aliás, era partilhada em geral pelos académicos ocidentais durante muito tempo depois da guerra. No entanto, o esforço para apagar esta verdade foi ganhando força à medida que o tempo passava; e, à medida que surgiam novas gerações que não tinham visto a guerra nem sabiam muito sobre ela, este esforço também ganhou maior êxito.
Hollywood também, talvez sem querer, desempenhou um papel nesta obliteração da verdade. Realizou uma série de filmes de grande sucesso de bilheteira, desde The Longest Day e The Guns of Navarone até Saving Private Ryan, que basicamente mostravam as potências ocidentais a lutar contra os nazis e a derrotá-los com valentia e sucesso. Estes filmes foram, evidentemente, feitos para o público ocidental, o que explica o seu enredo básico. Mas contribuíram, sem dúvida, para o êxito da narrativa de que a Segunda Guerra Mundial fora essencialmente entre as potências ocidentais, por um lado, e os nazis e os seus aliados, por outro, e que estes últimos haviam sido derrotados pelas primeiras.
O facto de o Reino Unido ter perdido um pouco menos de meio milhão de pessoas durante a guerra, incluindo forças de combate e civis, e os Estados Unidos um número ligeiramente inferior, em comparação com os 27 milhões de pessoas que perderam a vida na União Soviética, passou para segundo plano na memória pública ocidental. É certo que a comparação do número de mortos é iníqua e que todos os sacrifícios nessa guerra, por mais pequenos que sejam, têm de ser respeitados; mas o que está aqui em causa é a injustiça da memória pública ocidental, que cada vez mais se esqueceu da magnitude do sacrifício feito pelo povo soviético.
Esta obliteração convinha ao objetivo da Guerra Fria das potências ocidentais; de facto, a par da supressão do papel da União Soviética na derrota do fascismo, as potências ocidentais estavam a espalhar outra falsidade monstruosa, a saber, que a União Soviética era uma potência expansionista com desígnios agressivos em relação à Europa Ocidental. Foi convenientemente esquecido que um país que tinha perdido 27 milhões de pessoas numa guerra recentemente concluída e que tinha sofrido uma destruição imensa não podia estar a alimentar quaisquer desígnios agressivos no final dessa guerra. Mas a propaganda ocidental, encabeçada por arqui-imperialistas como Winston Churchill, inventou deliberadamente uma narrativa de perigo soviético para a Europa, a fim de fortalecer as classes dominantes europeias cuja hegemonia ficara seriamente ameaçada no rescaldo da guerra, uma ameaça que encontrou expressão nas concessões que tiveram de fazer. Uma das concessões foi a cedência à criação de um Estado-providência (welfare state) a nível interno, enquanto a outra foi a concessão de independência às suas possessões coloniais no estrangeiro (a que Churchill, arquiteto da Guerra Fria, se opôs).
De facto, a União Soviética havia aderido escrupulosamente ao acordo alcançado nas conferências de Ialta e Potsdam das potências combatentes antifascistas, tendo-se mesmo abstido de vir em auxílio da Revolução Grega, o que levou à sua derrota. No entanto, o imperialismo não teve qualquer constrangimento em persistir na sua narrativa de uma ameaça soviética, a fim de angariar apoio para uma ordem imperial que enfrentava um desafio existencial.
Muitas vezes não se reconhece que o sacrifício arrancado à força ao povo da Índia colonial, especialmente de Bengala, foi várias vezes superior ao sacrifício que os próprios países ocidentais tiveram de fazer durante a Segunda Guerra Mundial. A guerra da Grã-Bretanha na frente oriental contra o Japão, por exemplo, foi financiada em grande medida pelo “financiamento do défice” em larga escala do governo colonial indiano. Uma parte do financiamento do défice destinava-se a cobrir as despesas de guerra do próprio governo colonial, uma vez que a Índia foi arrastada para a guerra como combatente sem qualquer consulta ao seu povo; no entanto, a maior parte do financiamento do défice, que assumiu a forma de impressão de dinheiro, destinava-se a cobrir empréstimos forçados contraídos na Índia pelo governo britânico para cobrir as despesas de guerra das forças aliadas na frente oriental. Embora os empréstimos tenham sido registados como créditos da Índia face à Grã-Bretanha, denominados “saldos em libras esterlinas” e tratados como reservas contra as quais se imprimia dinheiro, nenhuma parte destas “reservas” podia ser efetivamente utilizada até muito depois do fim da guerra. Esta forma de financiamento do défice levou a uma subida acentuada dos preços, especialmente dos cereais alimentares, que, na ausência de qualquer racionamento da distribuição de alimentos nas zonas rurais, causou uma fome em Bengala que matou pelo menos três milhões de pessoas (em comparação com o meio milhão que havia morrido durante todo o curso da guerra na própria Grã-Bretanha). A ironia é que mesmo os “saldos em libras esterlinas” acumulados que a Grã-Bretanha tinha a pagar à Índia perderam a maior parte do seu valor, em parte devido à hiperinflação dos anos da guerra e do imediato pós-guerra e em parte devido à desvalorização da libra esterlina em 1949. Os três milhões de mortos em Bengala foram, em todos os sentidos do termo, baixas de guerra, apesar de não terem sido combatentes voluntários na mesma.
A obliteração do papel da União Soviética atingiu o seu apogeu com Donald Trump, que não se limita a não reconhecer o papel primordial da União Soviética na luta contra a Alemanha nazi; tem o descaramento de afirmar que foram os Estados Unidos que desempenharam o papel primordial na derrota da Alemanha nazi. Houve quem atribuísse esta afirmação fantástica de Trump à sua pura ignorância. Mas, tendo nascido em 1946, ele tem idade suficiente para ter experiência direta das consequências da guerra e para ter absorvido conhecimentos suficientes sobre o seu desenvolvimento. A sua afirmação descarada é simplesmente o limite último, expresso sem qualquer pudor, de forma tipicamente trumpiana, da falsidade imperialista ocidental que estava a ser propagada sorrateiramente desde o fim da própria guerra.
A decisão das potências ocidentais de boicotar a celebração, em Moscovo, do 80º aniversário da derrota da Alemanha nazi, embora expressa em termos de oposição a Putin pela guerra da Ucrânia, deve certamente muito a esta falsidade que agora se tornou corrente. É verdade que Putin não tem nada a ver com a União Soviética, e a sua celebração do aniversário tem por objetivo encurralar alguma da glória da União Soviética; mas o boicote das potências ocidentais nunca procurou ser justificado por elas através do estabelecimento de qualquer distinção entre a União Soviética e Putin.
Neste contexto, é digno de nota o facto de um grande número de países do Sul global, não só a China, o Vietname e Cuba, mas também o Brasil, a Venezuela e o Burkina Faso (que tenta atualmente libertar-se do neocolonialismo franco-americano), terem feito questão de assistir à celebração. A Índia, previsivelmente, esteve ausente; afinal, os precursores dos actuais líderes do Hindutva tinham sido grandes admiradores de Mussolini e de Hitler, e do lado oposto à maioria dos povos do mundo, durante a Segunda Guerra Mundial.
Há aqui um fator adicional em jogo. Com o fascismo a regressar a uma série de países do mundo, até mesmo a celebração da vitória sobre o fascismo, há oito décadas, deixou de ser uma questão prioritária para as potências ocidentais. A maioria dos governos ocidentais ou são eles próprios fascistas, ou estão a planear acordos com partidos fascistas emergentes. Donald Trump pertence à primeira categoria; de facto, o seu colega e confidente Elon Musk é um apoiante declarado do AfD alemão, que é um partido manifestamente neonazi. O regime ucraniano, envolvido numa guerra com a Rússia e que goza do apoio das potências imperialistas, está cheio de pessoas que são seguidores de Stepan Bandera, o notório colaborador dos nazis invasores durante a Segunda Guerra Mundial.
Vladimir Putin, mesmo admitindo que está a tentar arrecadar alguma da glória da União Soviética, pode pelo menos ser creditado por saber onde está a glória; o mesmo não se pode dizer das potências imperialistas ocidentais.
[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 19 de maio de 2025]