Substituição da luta de classes pela guerra cultural

Fernando Nogueira da Costa -

A reforma neoliberal desorganizou a classe trabalhadora, esvaziou a política de conteúdos redistributivos e deixou um vácuo simbólico preenchido pela extrema-direita com religiosidade e medo. A esquerda, em muitos casos, concentrou-se em pautas identitárias legítimas, mas perdeu conexão com o conflito de classes material, facilitando a hegemonia cultural conservadora entre as massas

1.

 Há uma tendência estrutural decisiva nas democracias ocidentais no século XXI: a substituição da centralidade da disputa socioeconômica, expressa na antiga “luta de classes”, pela guerra cultural, liderada por forças de extrema-direita nacional-populista. Elas mobilizam valores conservadores, ressentimento identitário e religiosidade evangélica como forma de organizar o eleitorado ainda dentro do reducionismo binário do “nós contra eles”.

 Essa mudança não é acidental, mas responde a mutações profundas do capitalismo, da estrutura de classes e da crise de representação política. Nas democracias liberais maduras, as políticas econômicas foram progressivamente delegadas a tecnocracias (bancos centrais independentes, regras fiscais, tratados de comércio), reduzindo o espaço de escolha popular.

 O espectro político foi reduzido à alternância entre variantes do mesmo neoliberalismo, com partidos social-democratas aceitando o tripé: austeridade, livre mercado e rentismo financeiro. Resultado: a política e a economia perderam sua capacidade de mobilizar afetos e antagonismos, abrindo espaço para outras pautas simbólicas mais polarizantes.

 Com os acessos à rede social, houve a ascensão da guerra cultural e identitária como eixo de mobilização. Na pauta da extrema direita, sobressai a defesa da “família tradicional”, combate ao aborto, ao feminismo, à educação sexual.

 Adotou um nacionalismo econômico seletivo, fazendo ataque a imigrantes, ONGs e elites globais. Busca a mobilização religiosa contra as “agendas identitárias” como símbolos de decadência moral ou ameaça à soberania.

 Seu público-alvo é constituído por ex-operários e classes médias ressentidas com a globalização, desindustrialização e multiculturalismo. Somam-se aos populares com trabalhos precarizados, religiosamente conservadores, seduzidos pela retórica de ordem e moral. Tornam-se evangélicos e protestantes, cuja ética de disciplina, sacrifício e literalismo bíblico se alinha à retórica do “resgate moral da nação”.

 Essa instrumentalização religiosa e moral da política reúne grupos religiosos fundamentalistas como blocos de poder político e eleitoral, influenciando legislação, educação e mídia. Políticos oportunistas (Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán, Giorgia Meloni, Javier Milei, etc.) capturam esse imaginário para construir coalizões autoritárias sob o disfarce da “liberdade de expressão” ou da “soberania popular”.

2.

 As consequências sistêmicas são observadas em diferentes esferas, cada qual com uma transformação observada. A economia foi reduzida à gestão tecnocrática ou populismo fiscal episódico. Na cultura política, passou a predominar a polarização simbólica em torno de valores morais, étnicos, religiosos.

 Na representação política, partidos tradicionais entraram em colapso, com a emergência de outsiders carismáticos. São desqualificados intelectualmente para a atuação democrática e representativa de toda a nação.

 Os direitos civis sofreram retrocessos em nome da moral, segurança ou soberania nacional. A própria classe trabalhadora fica dividida entre demandas materiais (salário, emprego) e valores morais.

 A reforma neoliberal desorganizou a classe trabalhadora, esvaziou a política de conteúdos redistributivos e deixou um vácuo simbólico preenchido pela extrema-direita com religiosidade e medo. A esquerda, em muitos casos, concentrou-se em pautas identitárias legítimas, mas perdeu conexão com o conflito de classes material, facilitando a hegemonia cultural conservadora entre as massas.

 Abaixo apresento um quadro comparativo didático entre as formas de mobilização política predominantes no século XX (industrial/fordista) e no século XXI (pós-industrial/neoliberal). Destaca a substituição progressiva da centralidade da pauta econômica pela guerra cultural e moral como eixo de disputa eleitoral e ideológica.

Dimensão

Século XX (Industrial / Fordista)

Século XXI (Neoliberal / Pós-industrial)

Eixo principal de disputa política

Conflito de classe e redistribuição econômica

Conflito moral-cultural e identidade

Protagonistas sociais

Classe trabalhadora industrial vs.
burguesia capitalista

Grupos identitários, religiosos, midiáticos, classes médias desindustrializadas

Demandas centrais

Salário, emprego,
bem-estar, previdência, reforma agrária

Costumes, segurança, imigração, moral sexual, “liberdade de expressão”

Forma de organização política

Partidos de massa, sindicatos,
movimentos operários

Influencers, igrejas, algoritmos, microcelebridades,
redes sociais

Mobilização afetiva

Solidariedade de classe, internacionalismo, ideologia material

Medo, ressentimento, moralismo, nacionalismo, nostalgia

Instrumentos ideológicos dominantes

Programas econômicos e projetos de Estado

Narrativas de identidade, religião, patriotismo e
“anti-sistema”

Papel das religiões

Secularização crescente, papel periférico

Centralidade de igrejas evangélicas, moralismo teológico-político

Modelo de comunicação política

Jornais, comícios, sindicatos, televisão estatal

Redes sociais, WhatsApp, microtargeting,
desinformação viral

Exemplos históricos

New Deal,
Estado Social europeu, revoluções socialistas

Trumpismo, bolsonarismo, orbanismo,
identitarismo de direita

 Essa transição expressa o esvaziamento do horizonte utópico da esquerda. Ela parece ter perdido a capacidade de formular projetos de futuro coletivos. O controle tecnocrático da economia despolitizou temas como orçamento, dívida e regulação. O uso do medo e da moral como substitutos da justiça social criou lealdades emocionais não baseadas em interesses materiais como outrora.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro aterraéredonda, do 20 de maio de 2025]

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